Nesta análise, examinaremos uma série de batalhas ocorridas durante a guerra russo-ucraniana, detalhando seu planejamento, iniciativas e lições aprendidas. O objetivo é proporcionar uma melhor compreensão do contexto dessas operações, que envolvem os dois lados de um conflito ainda em curso, mas que já oferece uma vasta quantidade de informações acessíveis ao público em geral.
A invasão russa da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022 e que completou três anos, foi planejada para se desenvolver em quatro eixos principais: Norte (Belarus-Kiev), Nordeste (Belgorod-Kharkiv), Leste (Luhansk-Donetsk) e Sul (Sebastopol-Kherson). A preparação do ataque foi precedida por um amplo bombardeio aéreo e pelo uso de mísseis contra infraestruturas críticas em solo ucraniano. Os principais alvos incluíram bases aéreas, radares, baterias antiaéreas e centros de comando e controle, com o intuito de assegurar a superioridade ou supremacia aérea russa e criar as condições necessárias para as operações subsequentes.
No âmbito do teatro de operações Norte, a Batalha do Aeroporto de Hostomel destacou-se como uma das primeiras grandes confrontações da guerra russo-ucraniana (2022-presente) e um evento decisivo no conflito. Seu propósito era garantir, em um curto espaço de tempo, a conquista da capital ucraniana, Kiev, atendendo a um dos objetivos políticos de Moscou: a deposição do governo pró-Ocidente liderado por Volodymyr Zelensky.
A Rússia buscou replicar contra a Ucrânia a bem-sucedida operação “Storm-333”, concebida pelo Marechal Sergei Sokolov e executada em 1979 no Afeganistão. Naquela ocasião, o exército soviético lançou duas frentes blindadas em direção a Cabul, utilizando paraquedistas para capturar o aeroporto de Bagram e transformá-lo em um posto avançado de reabastecimento. O objetivo final foi a remoção do então presidente afegão, Hafizullah Amin, seguida pela instalação de um governo fantoche alinhado à União Soviética.

Essa estratégia de alto risco e alta recompensa não era incomum, considerando o histórico de operações russas e soviéticas, como a Operação Danúbio em 1968 (invasão da Checoslováquia), a tomada do aeroporto de Pristina em 1999 e o transporte aéreo para o aeroporto de Simferopol durante a anexação da Crimeia em 2014. No mínimo, a tentativa seguia um padrão comum em operações anteriores de mudança de regime. Essa abordagem arriscada para capturar a capital também remetia à fracassada tentativa inicial de proteger Grozny em 1994, quando um ataque multifacetado ao coração da cidade falhou durante a Primeira Guerra da Chechênia. As operações russas frequentemente iniciavam-se com a captura de uma base aérea estratégica, seguida por um rápido acúmulo de forças aerotransportadas, que então buscavam neutralizar a liderança política e criar condições para uma operação terrestre mais ampla.
Assim, o plano aprovado pelo Kremlin previa, a exemplo do que ocorreu no Afeganistão, o avanço de duas colunas blindadas a partir da Bielorrússia e a conquista de um aeródromo como cabeça de ponte aérea próximo à capital. Uma das colunas seguiria pela margem oeste do rio Dnieper, na direção Gomel-Chernobyl-Kiev, composta por uma força-tarefa do 1º Corpo de Tanques do Distrito Leste, totalizando aproximadamente dez Grupos Táticos de Batalhão (BTGs). A outra coluna, a leste, avançaria na direção Briansk-Chernigov-Kiev, formada por cerca de dez BTGs do Distrito Central da Rússia. O objetivo dessas forças era se unir às tropas aeromóveis nas proximidades de Kiev, cercar a capital ucraniana e iniciar o cerco para depor o governo.
O Aeroporto de Hostomel, também conhecido como Aeroporto Antonov, possuía grande valor estratégico e tático para as operações russas. Projetado para aviação de transporte de carga e equipado com uma pista extensa de 3.500 metros, sua conquista seria essencial para a rápida inserção de recursos na região, incluindo blindados. Localizado a apenas 10 km a noroeste de Kiev, é um dos três aeroportos que atendem a cidade (os outros são Boryspil e Zhulyany), com um quarto aeródromo mais ao sul, em Vasylkiv. O local conta com uma boa rede de estradas e ligação ferroviária com o centro político, configurando-se como um ponto-chave para os russos.

Ademais, diferentemente dos aeródromos mencionados anteriormente, o Aeroporto de Hostomel não está localizado em um grande centro urbano e situa-se na margem esquerda do rio Dnieper, assim como Kiev, o que favorecia o cumprimento da missão planejada. Além disso, os militares russos escolheram Hostomel devido à sua extensa pista, sua posição ao longo da rota de avanço das forças mecanizadas, ao terreno defensável ao redor do campo de aviação e, provavelmente, às defesas mais leves em comparação com outros aeródromos próximos. Isso permitiria que uma pequena força de ataque capturasse e mantivesse o local por tempo suficiente até a chegada de reforços por via aérea ou terrestre.
Um aspecto relevante sobre o planejamento e a execução das tentativas de capturar aeródromos no início da invasão é que os russos também teriam planejado desembarcar em outros dois aeroportos ao norte: Boryspil e Vasylkiv. Situado na margem oriental do rio Dnieper, Boryspil é o principal hub de transporte da Ucrânia, com uma pista de 4.000 metros, ideal para operações de aviação estratégica do VKS (Forças Aeroespaciais Russas). Localizado a 29 km a sudeste de Kiev, está suficientemente afastado da capital para possibilitar uma rápida tomada do complexo. No entanto, a destruição das pontes sobre o rio poderia comprometer toda a operação. Já o aeródromo de Zhulyany, com uma pista de 2.300 metros, apresentava limitações claras para a operação de grandes aeronaves de carga transportando veículos blindados pesados. Além disso, por estar bem dentro da área urbana de Kiev, ficava exposto a fortes defesas que poderiam resistir ao desembarque de paraquedistas russos e a contra-ataques intensos após uma eventual captura, razão pela qual foi descartado. Quanto a Vasylkiv, localizado ao sul de Kiev, a maior distância em relação a Hostomel — cerca de 30 km da capital — dificultava a manobra aeromóvel, por estar muito recuado em comparação com outros aeródromos que serviriam como cabeça de ponte aérea. Especialistas sugerem que uma operação simultânea ao sul, em Vasylkiv, poderia ter sido considerada como um complemento. De qualquer forma, tudo deveria começar com Hostomel.
Para contextualizar adequadamente, a Ucrânia alegou ter abatido um Il-76 em Vasylkiv, embora essa informação ainda não tenha sido comprovada. Sabe-se que 18 aeronaves Il-76 decolaram de Pskov em direção à Ucrânia, mas tiveram que alterar sua rota e pousar na Bielorrússia, pois a operação ainda não havia sido concluída e enfrentava forte resistência ucraniana. De certa forma, os russos tentaram capturar três aeroportos ao norte: Hostomel (50.596771, 30.198858), Boryspil (50.338626, 30.884794) e Vasylkiv (50.230244, 30.305293). O ISW (Institute for the Study of War) também menciona uma tentativa de assalto aeromóvel em Boryspil, mas essas duas operações tiveram escopo e escala significativamente menores em comparação com Hostomel.

A estratégia previa a conquista de aeroportos nas regiões oeste, sul e sudeste de Kiev. Após o estabelecimento do cerco, as tropas aeromóveis avançariam para o interior da capital, contribuindo para sua captura. Imagens de satélite teriam identificado 30 aeronaves Il-76 na Base Aérea da 106ª Divisão Aeroterrestre (Ryazan) e 20 Il-76 na Base Aérea da 76ª Divisão Aeroterrestre (Pskov), sugerindo preparativos para um possível assalto aeroterrestre de grande escala.
O assalto aeromóvel/aeroterrestre seria realizado pela Força Paraquedista Russa (Vozdushno-desantnye voyska Rossii, VDV). Composta por cerca de 45 mil homens, a VDV é uma força independente que, junto ao Exército, à Armada, à Força Aeroespacial e à Força de Mísseis Estratégicos, integra as Forças Armadas Russas. Para a operação em Hostomel, estava previsto o emprego da 31ª Brigada de Assalto Aéreo de Guardas, sediada no Distrito Militar Sudeste e com experiência em combates na Chechênia, Geórgia, Crimeia e Donbas. Assim, a conquista de Kiev foi planejada como uma operação conjunta entre o Exército, a Força Aérea e os paraquedistas, tendo como objetivo político a deposição do governo ucraniano pró-Ocidente. Dentre os objetivos estratégicos, especula-se que a tomada do Aeroporto de Hostomel era um dos mais importantes, ponto que será detalhado a seguir.
A batalha
O anúncio do presidente russo Vladimir Putin, nas primeiras horas de 24 de fevereiro de 2022, marcou o início da invasão do território ucraniano. Os russos iniciaram seu ataque naquele dia com ações pré-assalto contra a cidade, a base aérea e o corredor de infiltração. Por volta das 6h ou 7h da manhã, dois mísseis de cruzeiro 3M14 Kalibr atingiram o Aeroporto de Hostomel, mas revelaram-se ineficazes: um deles errou o quartel e abriu uma cratera em um campo de desfile próximo, enquanto o outro falhou ao atingir um prédio residencial nas proximidades. Apesar disso, as Forças Aeroespaciais Russas conseguiram suprimir algumas das defesas aéreas ucranianas com eficácia. Outros ataques tiveram como alvo os sistemas de comando e controle ucranianos, deixando a força aérea da Ucrânia em desvantagem para disputar o controle do espaço aéreo naquela manhã. O bombardeio estratégico com mísseis de cruzeiro destruiu dois radares antiaéreos que cobriam o rio Dnieper. Além disso, um ataque eletrônico coordenado e de larga escala confundiu e desativou os demais equipamentos de defesa antiaérea ucraniana, abrindo caminho para o assalto aéreo a Hostomel.
Realizando um voo a baixa altitude (conhecido pelo termo “desenfiado”) sobre o rio Dnieper, duas ondas de helicópteros, totalizando 34 aeronaves, decolaram de Mazyr — campo de aviação VD Bolshoi Bokov, na Bielorrússia, a cerca de 170 km ao norte de Hostomel — e de Chojniki, por volta das 08h do dia 24 de fevereiro. No escalão de reconhecimento, estavam os helicópteros Ka-52 “Alligator”, responsáveis por neutralizar os principais focos de resistência ao longo do itinerário e no objetivo final. Durante o longo deslocamento de aproximadamente 150 milhas náuticas (277 km), a formação enfrentou fogo de armas leves e mísseis portáteis guiados por calor disparados pelo adversário. Um Ka-52 foi abatido sobre o rio Dnieper, enquanto outro precisou realizar um pouso forçado devido aos danos sofridos.


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No escalão de segurança, havia aeronaves Mi-24 “Hind”, encarregadas de escolta e apoio de fogo aproximado. No escalão de manobra, estavam helicópteros Mi-8 “Hip”, transportando cerca de 300 militares da VDV, pertencentes à 31ª Brigada de Assalto Aéreo de Guardas e à 45ª Brigada Spetsnaz de Guardas Separada.
A ação no objetivo foi rápida, durando cerca de três horas, pois a guarnição do aeroporto, composta por aproximadamente 300 membros da 4ª Brigada de Reação Rápida da Guarda Nacional Ucraniana, consistia majoritariamente em recrutas com treinamento e equipamento limitados. Ao chegarem ao solo, os soldados russos, armados apenas com armas leves, metralhadoras e sistemas anticarro portáteis, saíram para proteger o campo de aviação e as estruturas adjacentes. Embora essas unidades aerotransportadas russas treinassem regularmente para ataques helitransportados, não há evidências de que as tropas envolvidas conhecessem o plano com antecedência suficiente ou tivessem tempo para ensaiá-lo. As ordens de invasão foram recebidas com apenas 24 horas de antecedência, e os soldados não tinham clareza sobre a intenção do comandante em relação ao objetivo da operação.
O campo de aviação, por ser plano, oferecia pouca cobertura ou ocultação para os soldados russos, cujo efetivo era insuficiente para controlar uma base aérea daquele tamanho. Apesar disso, o poder de fogo das aeronaves de ataque russas viabilizou a manobra aeromóvel e permitiu a captura dos principais pontos de defesa do aeródromo. Mesmo com superioridade material, nessa ação inicial o exército russo perdeu sete aeronaves, incluindo os dois Ka-52 já mencionados. Com isso, abria-se a oportunidade para a próxima fase da operação: o assalto aeroterrestre.
Embarcados em cerca de 18 aviões Ilyushin Il-76, estava o efetivo principal designado para manter a cabeça de ponte aérea e realizar as ações subsequentes de junção e conquista de Kiev, estimado em aproximadamente 2.000 homens. Na mesma composição, encontravam-se blindados BMD-4M, BTR-MDM e outros equipamentos pesados, que proporcionavam melhores condições para resistir a uma investida inimiga. Essas aeronaves, no entanto, não conseguiram pousar em Hostomel e, já estando no ar, foram desviadas para a fronteira sul da Bielorrússia.


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Antes da chegada desse contingente, as Forças Armadas da Ucrânia executaram um eficiente contra-ataque ao aeroporto. A liderança militar ucraniana ordenou imediatamente uma operação para retomar o campo de aviação, mobilizando elementos da 80ª Brigada de Assalto Aéreo, da 95ª Brigada de Assalto Aéreo, da 72ª Brigada Mecanizada e do 3º Regimento de Propósito Especial das Forças de Operações Especiais (SSO). Tropas da 72ª Brigada Mecanizada, sob o comando do coronel Oleksandr Vdovychenko, estavam posicionadas em prontidão nas proximidades de Kiev. Voluntários, incluindo veteranos e outros cidadãos ucranianos, também pegaram em armas para apoiar o contra-ataque e defender a capital, como ocorreu em todo o país nas primeiras horas e dias da invasão. As forças de assalto aéreo partiram de Zhytomyr em helicópteros, enquanto as tropas mecanizadas avançaram por terra a partir de uma base militar em Bila Tserkva, cerca de 60 milhas (aproximadamente 97 km) ao sul de Hostomel. Uma das primeiras medidas foi desencadear uma pesada barragem de artilharia sobre a pista de Hostomel, com o objetivo de impedir reforços russos, auxiliada por dois bombardeiros Su-24. Em seguida, foi realizado um ataque às posições russas, que os expulsou para os bosques ao redor do aeroporto. Essas ações impediram o desembarque do efetivo principal russo naquele momento.
Por volta das 15h30, o presidente Volodymyr Zelensky declarou: "Os [soldados aerotransportados] inimigos em Hostomel foram bloqueados, e as tropas receberam ordens para destruí-los". O ataque, porém, só começaria mais perto do pôr do sol, por volta das 17h30. Às 16h, o repórter da CNN Matthew Chance surpreendeu-se ao ser
recebido por soldados aerotransportados russos que estabeleciam posições de bloqueio no perímetro do campo de aviação.
Paralelamente à manobra de envolvimento aeromóvel, ocorria a operação terrestre para alcançar o Aeroporto de Hostomel, onde a Rússia enfrentou diversas dificuldades. As forças russas realizaram um deslocamento administrativo, penetrando com facilidade no território ucraniano e chegando às proximidades da capital em cerca de 48 horas. Isso, porém, gerou problemas logísticos, pois excedeu a distância máxima de apoio, estimada em 90 milhas (144 km). Após cruzarem a fronteira ucraniana às 4h da manhã de 24 de fevereiro, as forças mecanizadas russas iniciais percorreram 79 milhas (127 km) por estrada até Kiev. O plano russo provavelmente previa que os 18 aviões de transporte ou as forças mecanizadas chegariam ao aeroporto no final da tarde, mas isso não aconteceu. As tropas mecanizadas enfrentaram dificuldades ao avançar pelo estreito corredor que passava por Chernobyl e Ivankiv, deixando as forças aerotransportadas russas isoladas durante a primeira noite. Na noite de 24 para 25 de fevereiro, essas tropas começaram a chegar a Hostomel, vindas da Bielorrússia pela zona de Chernobyl. Elas estabeleceram um posto de comando no campo de aviação e organizaram um centro de equipamentos e veículos fora da pista e dos prédios, em preparação para novas ações.
Outra consequência do avanço excessivo foram as emboscadas ucranianas com armamento anticarro, drones armados e artilharia. O grosso do exército ucraniano estava concentrado na região de Donbas, onde, desde 2014, havia um movimento separatista. A estratégia adotada para a defesa de Kiev baseou-se em ações indiretas, seguindo o modelo da resistência. Esse sucesso foi impulsionado pelo amplo apoio da população local, que informava a localização das tropas russas, facilitando a neutralização de seus principais meios logísticos e de combate.
A luta pela conquista de Hostomel durou mais do que o previsto pelos russos. Tradicionalmente, tropas paraquedistas têm capacidade de combate de até 72 horas sem reabastecimento, tempo que se reduz ainda mais quando transportadas por helicópteros. Por volta das 13h, quase duas horas após o início da batalha, os russos finalmente asseguraram o campo de aviação, mas permaneceram em uma posição vulnerável. Os helicópteros retornaram à Bielorrússia, e os soldados aerotransportados, sem tanques ou artilharia, tiveram que defender a base aérea com apoio aéreo limitado — possivelmente apenas dois jatos de ataque terrestre Su-25 Frogfoot — até a chegada de reforços. Enquanto isso, as forças ucranianas mobilizavam efetivos e mantinham uma vantagem decisiva em poder de fogo ao redor da capital.
Na manhã seguinte, 25 de fevereiro, as forças terrestres russas chegaram ao aeroporto e reassumiram o controle. O agrupamento do Distrito Militar Oriental tinha como objetivo proteger a operação aérea russa, cercando a cidade pelo oeste e bloqueando reforços ucranianos. Inicialmente, autoridades ucranianas negaram que a Rússia controlasse o aeroporto, mas, ao final do dia, admitiram o domínio russo após o Ministro da Defesa declarar que o campo de aviação estava muito danificado para ser utilizado.
Destaca-se que, durante os combates, o comando russo sofreu uma baixa significativa. Em 28 de fevereiro, o Major-General Andrei Sukhovetsky, chefe do estado-maior da VDV, foi atingido e morto por um sniper do 3º Regimento de Forças Especiais da Ucrânia. Esse fato, por si só, evidencia a importância atribuída à operação.
Apesar da conquista de Hostomel, a Rússia enfrentou pesadas perdas nas áreas próximas, como Irpin, Morschun e Bucha (batalhas que serão analisadas posteriormente). Sem capacidade de combate para avançar, com dificuldades logísticas crescentes, estando ao alcance da artilharia ucraniana e com sua capacidade ofensiva comprometida em outras frentes, os russos decidiram abandonar o plano inicial de tomar Kiev. Assim, em 29 de março, optaram por se retirar do norte da Ucrânia e redirecionar seus esforços para os teatros de operação do leste e do sul.
Encerrou-se, dessa forma, uma das maiores operações aeromóveis realizadas desde o fim da Guerra Fria. Embora tenha alcançado parte dos objetivos militares e estratégicos, a Rússia perdeu o ímpeto necessário para cumprir o principal objetivo político no teatro de operações Norte. Nota-se que diversos erros foram cometidos pelos russos, especialmente no uso dos helicópteros, o que pode ter contribuído para a redução de seu poder de combate.
Ensinamentos e aprendizados
Um dos principais ensinamentos extraídos da operação aeromóvel na Batalha de Hostomel é a importância de conquistar a superioridade aérea para o emprego eficaz da Aviação de Exército. A Rússia realizou uma preparação com fogos cinéticos e não cinéticos (guerra eletrônica) para neutralizar a defesa aérea ucraniana de médio alcance. No entanto, percebe-se que a superioridade aérea não foi plenamente alcançada, pois a Ucrânia utilizou aeronaves Su-24 no contra-ataque em Hostomel e continuou operando, em outras regiões, sistemas como o S-300.
A Ucrânia possuía a maior rede de defesa aérea guiada por radar baseada em terra da Europa, herdada da União Soviética. Essa rede incluía três brigadas e dois regimentos de sistemas S-300PS/PT (SA-10), uma brigada de S-300V1 (SA-12), duas brigadas de Buk-M1 (SA-11), alguns sistemas S-125 modernizados (SA-3) e uma combinação de sistemas de curto alcance, como o Osa (SA-8) e o Tor recondicionado (SA-15).

Combinada com a habilidade de seus operadores, essa rede era, sem dúvida, a mais capaz enfrentada por uma força aérea nas últimas décadas. As Forças Aeroespaciais Russas foram encarregadas de degradar e neutralizar esse sistema, mas analistas consideravam que elas eram geralmente ineficientes contra alvos dinâmicos de defesa aérea inimiga e na avaliação oportuna dos danos causados a esses sistemas. Como resultado, os russos adotaram um plano de engajamento estático, atacando alvos predeterminados em horários fixos. Assim, muitos dos mísseis lançados na manhã do ataque atingiram posições fixas e previamente identificadas, falhando em atingir sistemas de defesa aérea ucranianos que haviam começado a se deslocar no dia anterior. Consequentemente, acredita-se que o ataque russo inicial tenha sido significativamente menos eficaz do que o esperado pelos militares.
Embora a Rússia tenha obtido certa liberdade de ação para desencadear essa operação, ela não conseguiu eliminar a defesa antiaérea de baixa altitude, o que explica grande parte das perdas de seus helicópteros. O amplo uso de armas antiaéreas portáteis (MANPADS) e até mesmo de armamento individual foi responsável pelo abatimento das sete aeronaves russas em Hostomel. Embora seja praticamente impossível neutralizar completamente esse tipo de ameaça, medidas ativas e passivas poderiam ter reduzido a probabilidade de baixas.
Nesse contexto, um aspecto crucial que não foi considerado — e que poderia ter diminuído significativamente a chance de engajamento por armas de curto alcance — foi o voo noturno com equipamentos de visão noturna. A operação aeromóvel em Hostomel começou pela manhã, abrindo mão de uma das maiores vantagens das operações com helicópteros: a escuridão da noite. Esse fato contraria a doutrina das principais potências ocidentais, que priorizam e, em alguns casos, restringem operações com helicópteros a noites de baixa luminosidade. Tal prática é até mesmo recomendada pelo manual brasileiro, que afirma: “O Assalto Aeromóvel deve ser executado prioritariamente no período noturno, com o emprego de equipamentos de visão noturna”.
Ao optar por uma operação diurna, torna-se ainda mais importante, como medida de defesa antiaérea, a realização do voo desenfiado. Nessa técnica de progressão, as aeronaves se ocultam nas dobras do terreno, voando a altitudes muito baixas conforme necessário. A análise de imagens e vídeos da operação em Hostomel e de outros momentos do conflito na Ucrânia sugere que essa foi uma falha da Rússia.
Em vários registros, observa-se helicópteros russos voando a mais de 100 pés (cerca de 30 metros) de altura, o que facilita o engajamento por radares e armas portáteis. O terreno do norte da Ucrânia é predominantemente plano, sem grandes obstáculos, e destaca-se que boa parte do voo ocorreu sobre o rio Dnieper, dificultando o uso de cobertura ou abrigos para uma progressão segura. Assim, a altitude de voo é essencial para garantir o sigilo e a segurança das aeronaves.
Outro aspecto relevante para a defesa antiaérea são os sistemas de proteção ativa das próprias aeronaves. Equipamentos como “chaff” e “flare” permitem despistar e desengajar mísseis termoguiados dos MANPADS. As aeronaves Ka-52 russas, mais modernas, possuem sistemas de contramedidas infravermelhas ativas, bloqueadores eletrônicos, receptores de alerta de radar (RWR), sensores de detecção de laser, sistemas de aviso de aproximação de mísseis por infravermelho e dispensadores de flare/chaff UV-26 instalados em carenagens nas pontas das asas. Foi constatado o uso intenso desses dispositivos pelas aeronaves russas, tanto durante o deslocamento quanto na ação no objetivo, especialmente após a detecção de armas antiaéreas pelas tropas ucranianas.
Outra medida para aumentar a surpresa e reduzir a capacidade de reação das armas antiaéreas é o voo em formação cerrada. O sigilo proporcionado pelo voo a baixa altitude é potencializado por essa formação, sendo o distanciamento ideal entre as aeronaves de 2 a 3 rotores. Essa distância varia conforme o modelo do helicóptero, mas, para os russos utilizados na operação, estaria entre 30 e 60 metros. A análise de diversos vídeos revela que essa prática não foi adotada, contribuindo para a perda da surpresa e o abatimento de aeronaves.
Quanto à concepção da operação, verifica-se que o assalto inicial foi planejado com um efetivo subdimensionado para a área a ser conquistada. O Aeroporto de Hostomel tem um perímetro aproximado de 10 km e uma área de cerca de 3 km², mas a tropa russa de primeiro escalão contava com apenas 300 soldados. Apesar de serem de elite, esse número era insuficiente para ocupar os principais pontos do aeródromo. Assim, a manobra russa dependia da chegada do efetivo principal em aviões cargueiros, tornando-a extremamente arriscada.
A inutilização da pista de pouso pela artilharia ucraniana impediu a chegada do contingente responsável por conquistar e manter o aeroporto. Não se sabe, porém, por que a Rússia não optou por um assalto aeroterrestre com paraquedas em vez de um pouso com aviões, já que, teoricamente, suas tropas tinham treinamento e equipamento adequados para isso. É possível que a mobilização da 72ª Brigada Mecanizada Ucraniana tenha frustrado a continuidade da operação, conforme preconizado como condição desejável na doutrina.
Outro aspecto relevante foi a grande distância planejada para o assalto aeromóvel, de cerca de 150 milhas náuticas (277 km). Uma das limitações dessas operações é o alto consumo de combustível de aviação, que geralmente restringe a profundidade do Assalto Aeromóvel a 100 km — condição desrespeitada pela Rússia.
Portanto, a ação russa foi planejada como uma operação rápida e agressiva, com surpresa, na retaguarda profunda do inimigo, mas negligenciou princípios fundamentais como segurança e massa.
No mesmo sentido, destaca-se a ausência de ressuprimento aéreo para sustentar o esforço da operação. Após a ação inicial, não houve continuidade nas operações dos helicópteros em Hostomel, possivelmente devido à longa distância entre o local da ação e a zona de reunião inicial, sem o estabelecimento de um Posto de Ressuprimento Avançado (PRA). Nesse cenário, considerando a distância e a presença inimiga no itinerário, uma solução poderia ter sido o uso de aeronaves de grande porte, como o Mi-26, para o ressuprimento, ou até mesmo o lançamento de suprimentos por paraquedas.
Como ensinamento positivo da operação russa, pode-se destacar o amplo emprego de aeronaves de ataque, tanto em missões de escolta quanto de apoio aéreo aproximado. Embora as aeronaves de assalto russas Mi-8 estejam equipadas com armamento axial (foguetes, mísseis e metralhadoras), não se prescindiu de plataformas de combate dedicadas exclusivamente ao ataque. Isso possibilitou uma elevada capacidade de choque, alta letalidade e melhor proteção. Ainda que o número de aeronaves abatidas tenha sido alto, acredita-se que esse número seria ainda maior sem a utilização desse tipo de helicóptero.
Conclusão
A Batalha de Hostomel foi um dos eventos iniciais mais importantes da campanha militar russa durante a invasão da Ucrânia. À luz da Doutrina Militar vigente, observa-se que essa ação de Assalto Aeromóvel, se bem-sucedida, teria proporcionado uma vantagem decisiva e determinado o curso do combate, dada a proximidade do aeroporto com a capital, Kiev.
A Rússia conseguiu tomar o controle do aeroporto, mas não atingiu o objetivo estratégico do ataque. Os recrutas da Guarda Nacional Ucraniana, apoiados por unidades de artilharia, conseguiram retardar o avanço das tropas aerotransportadas de elite russas por tempo suficiente, impedindo que os militares russos utilizassem o campo de aviação como uma ponte aérea para apoiar uma rápida tomada da capital ucraniana.
O fracasso militar russo evidencia a importância da inteligência militar e da necessidade de um levantamento detalhado de dados sobre as capacidades aliadas e inimigas para cumprir a missão e alcançar o êxito. Por se tratar de uma operação de alto risco, com uma variedade de meios envolvidos, o risco calculado e a relação custo-benefício devem ser cuidadosamente avaliados.
Havia uma crença doutrinária que sustentava o objetivo político de guerra da Rússia, baseada na ideia de alcançar uma vitória decisiva por meio do uso de poder de fogo superior no menor tempo possível, uma demonstração de força destinada a acabar com a resistência ucraniana. Uma tática comum nesse contexto é o coup de main, uma operação ofensiva caracterizada pela velocidade e surpresa, visando causar choque e atuar como um multiplicador de força massivo. Historicamente, grandes cidades caíram com pouca ou nenhuma resistência, mesmo quando as forças de ataque eram limitadas em tamanho. A União Soviética e seu estado sucessor, a Rússia, têm uma longa tradição de conduzir operações desse tipo, como na Polônia em 1939 (fracasso inicial), Finlândia (fracasso inicial), Hungria em 1956 (sucesso), Primavera de Praga em 1968 (sucesso), Afeganistão em 1979 (sucesso), Chechênia em 1994 (fracasso inicial), Geórgia em 2008 (sucesso) e Crimeia em 2014 (sucesso). A invasão da Ucrânia foi planejada seguindo essa mesma lógica.
A operação deveria ser de baixo risco, semelhante à anexação da Crimeia, onde as Forças Armadas Ucranianas (ZSU) não ofereceriam resistência significativa, permitindo uma conclusão rápida com o uso de velocidade e surpresa. A força invasora nem foi informada sobre a operação até, em média, dois dias antes do início, recebendo ordens extremamente simples e básicas para se deslocar para locais onde se esperava que os ucranianos não reagissem. Por isso, os russos foram pegos de surpresa ao enfrentar uma resistência feroz. O FSB (serviço de inteligência russo) deveria ter preparado o terreno, minando o governo, o exército e a sociedade ucraniana com espiões em posições-chave para garantir o sucesso da invasão. A decisão de atacar em uma frente tão ampla com poucas tropas e quase nenhuma profundidade estratégica foi baseada na suposição de que os ucranianos não reagiriam, o que contrariava a própria doutrina militar russa para operações desse tipo.
Os sucessos iniciais no sul da Ucrânia, do istmo de Perekop até os oblasts de Kherson e Zaporizhzhia, foram muito mais significativos do que os russos esperavam em outras frentes. Pelo menos no início, a resistência ucraniana foi mínima, o que contrastou com a forte oposição encontrada em outras regiões. Até hoje, o governo ucraniano atribui esse fracasso inicial à presença de um grande número de traidores, tanto no governo quanto nas forças militares, que supostamente enfraqueceram deliberadamente as defesas da fronteira e ordenaram que unidades militares, milícias da Defesa Territorial (TDF) e outras forças de segurança recuassem enquanto os russos avançavam. Nesse contexto, milhares de pessoas foram presas pelo SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia), e muitas já foram julgadas e condenadas por traição.
No entanto, os avisos sobre a resistência ucraniana foram ignorados pela liderança política e militar do Kremlin. Isso refletiu uma falha em reconhecer a incompatibilidade fundamental entre o estilo de liderança centralizada da Rússia e a microgestão de suas capacidades militares. Como argumenta Plokhy em seu livro "The Russo-Ukrainian War", a Operação Militar Especial foi baseada na "crença de Putin na inexistência da nação ucraniana e no desejo dos ucranianos de viver sob o domínio russo", com a operação militar modelada na tomada da Crimeia em 2014. Essa visão sustentou a doutrina militar russa emergente, que previa uma vitória rápida sobre Kiev. No entanto, como demonstrado em Hostomel, a realidade no terreno tornou esse objetivo inicial insustentável.
Por fim, a Batalha de Hostomel evidenciou que, para vencer uma guerra, todas as ferramentas disponíveis devem ser utilizadas para alcançar surpresa e uma vitória decisiva, como no caso de um Assalto Aeromóvel. Contudo, assim como ocorreu com os aliados na Operação Market Garden durante a Segunda Guerra Mundial, os russos enfrentaram um revés semelhante, mostrando que a história militar nunca pode ser ignorada no planejamento estratégico. Um paralelo interessante pode ser traçado entre a Batalha de Arnhem e o ataque aéreo do VDV em Boryspil, enquanto Hostomel se assemelha mais às dificuldades enfrentadas pela 82ª Divisão Aerotransportada em Nijmegen. Operações aerotransportadas ou aeromóveis da OTAN, como a Batalha de Mogadíscio, a Operação Market Garden, a Batalha de Dien Bien Phu e a Batalha de Takur Ghar durante a Operação Anaconda no Afeganistão, mostram que esse tipo de operação pode tanto alcançar sucesso espetacular quanto terminar em desastre, dependendo do planejamento e da execução.
Fontes:
http://www.ebrevistas.eb.mil.br/PADECEME/issue/view/1403/259
https://warontherocks.com/2023/08/the-battle-of-hostomel-airport-a-key-moment-in-russias-defeat-in-kyiv/
https://bbcrussian.substack.com/p/ukraine-war-the-fight-for-hostomel-airfield
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https://ompv.eceme.eb.mil.br/images/conter/criseru/Panorama_do_Conflito_da_Ucrnia_Nr001.pdf
https://ompv.eceme.eb.mil.br/images/conter/criseru/Panorama_do_Conflito_da_Ucrania_Nr002.pdf
https://ompv.eceme.eb.mil.br/images/conter/criseru/Panorama_do_Conflito_da_Ucrania_Nr003.pdf
https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/13305/1/MO%206830%20-%20Felipe%20FRYDRYCH.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=r0Ji7KqqEqg
https://www.youtube.com/watch?v=D4J1nes-wpw
https://www.youtube.com/watch?v=bniPj92YVhU
https://threadreaderapp.com/thread/1883259601149415726.html
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